Acho que a diferença de um escritor para os demais homo sapiens é a capacidade de enxergar além do que é visto, dito e escrito. O dom de devanear sobre qualquer assunto e enxergar cabelos multicoloridos em cascas de ovos é muito produtiva, mas na maioria das vezes é um potencial causador de morte, ou loucura, de muitos de nós, abatidos pelo mal do mundo que imaginamos e reimaginamos muitas vezes pior.

    Para provar minha teoria, é necessário recorrer ao grão de arroz que encontrei recentemente na mesa da cozinha. Para situar o leitor, imagine uma mesa de proporções singulares, quadrada, 1 x 1 metro, com uma toalha de vacas leiteiras com um ordenador sinistro com cara de serial killer dos anos 80. Confesso que não sei como seria a cara de um serial killer dos anos 80, mas é para gerar um ar de filme trash de terror que citei o infeliz.  Sim meus senhores, não um punhado, não uma colher, não um pouco, mas sim apenas um único grão de arroz na mesa. Pequenino, inofensivo, de aparência saudável e natural, cozido e de coloração levemente amarelada, possivelmente com um tempero Sazon.

   Nesse momento a dúvida que inquieta o seu coração de leitor entediado deve ser a naturalidade de encontrar um grão de arroz na mesa da cozinha, comida típica em nosso país, mas não se engane, caro leitor, nada é o que parece ser! A noite estava chuvoso, lá fora o vento uivava como um cão faminto, minha esposa, Mary, já dormia, e naquele momento eu contava apenas com um par de pantufas fofinhas e minha covardia para me defender.

   Defender? Do quê? Seu maluco! Alto lá! Tenho provas concretas contra o grão de arroz! Para sua informação, eu e minha mulher estávamos seguindo uma dieta rigorosa de carboidratos zero, ela para eliminar alguns pneuzinhos, já eu para eliminar o bote salva vidas que se ancorava em mim, e fazia exatamente dois meses que o arroz não era mais bem vindo em nosso lar. Como explicar aquele rebelde?

   Mary poderia estar comendo carboidratos escondida, mas havia deixado a prova do crime em nossa mesa, tal qual uma bandida que esquecera de limpar as marcas de sangue. Um trovão ressoou forte, eu me assustei. Comecei a vasculhar o lixo, armários, panelas sujas na louça, geladeira, qualquer vestígio que comprovasse minha teoria, mas não encontrei nada que a incriminasse. A réu estava absolvida, por enquanto.

   Infelizmente o alívio de desconsiderar a possível traição de Mary desencadeou um medo ainda maior. E se a casa tivesse sido invadida? Armei-me com uma panela de feijão e fui em busca do meliante. Mais um trovão ressoou e senti um arrepio percorrer meu corpo. Sabia onde o bandido poderia estar escondido.

   Abri a porta da dispensa rapidamente, apontei minha indestrutível panela de feijão em frente ao peito, gritei um rosnado ameaçador que não saberia traduzir em palavras e de repente tudo fez sentido. Não, para sua decepção não havia nenhum bandido ali, só pensei nos alimentos da dispensa e cheguei a conclusão que podíamos estar sendo vítimas de ratos, e o mais sábio que eu poderia fazer naquele momento era fugir.

   Não dormi aquela noite. Rolei na cama pensando em todos os perigos que se estendiam na cozinha. Pensei na dedetização, nos alimentos contaminados, nas doenças que os ratos transmitiam, na morte lenta e dolorida que aguardava Mary e eu. O máximo que pude fazer pela nossa salvação foi proteger nossas pantufas de virarem lar de algum roedor forasteiro.

   Na manhã seguinte, o mistério do grão de arroz foi resolvido.

   – Amor, temos que ser mais flexíveis na nossa dieta. Ontem, a Lucia passou aqui, trouxe uma bandeja de arroz de forno para comermos com a carne e a coitada teve que levar tudo embora. Uma desfeita!  Vamos abrir algumas exceções, o que acha?

   Beijei o rosto de Mary, olhei para o grão de arroz que ainda estava na mesa e pensei comigo mesmo: escritor é mesmo um bicho doido!